
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco
de coragem.
- Blues da Piedade, Cazuza -
nada que o sol não explique / tudo que a lua mais chique / não tem chuva que desbote essa flor. (Leminski)
Uma coisa é fato: estou sensível estes dias... o choro está fácil, o pensamento livre, o coração aberto, a profissão em crise e os dedos soltos... mas para além do sentimentalismo que anda tomando conta, rs, "Nascidos em Bordéis" é realmente um filme estarrecedor, inspirador e chocante.
Contexto: Deixei o Marcão em casa depois da nossa corrida na lagoa e vinha embora... descabelada, suada e com sede... cantando “Like a Rolling Stone”, sonhando com uma coca-light e pensando no que iria fazer no resto da noite. Resolvi passar na locadora. Procurava algo leve, quase uma desculpa para colocar os pés pra cima e curtir o cansaço da corrida. Algo que me fizesse relaxar, diminuir a velocidade dos pensamentos e que ajudasse minha noite de hoje ser melhor do que a insônia de ontem. (Pois bem... se estou aqui, às 2h30 da manhã é porque tais planos, obviamente, deram errado. Mas conto e justifico por que.)
Entrei na locadora, peguei a sonhada coca-light no freezer e fui direto na sessão de lançamentos – já vi, já vi, já vi, não quero ver, este também não... – resolvi mudar de sessão. Drama – já vi, já vi, nossa, este é ótimo!, já vi, este é ruim, este não quero ver... Arte – já vi, lindo, já vi, já vi, não entendi, o melhor de todos os tempos, dormi, já vi... e eis que surge, escondido entre Laranja Mecânica e Fale com Ela, “N a s c i d o s - em - B o r d é i s”. O filme me escolheu. Não tive opção.
Do que se trata: Uma fotógrafa (se não me engano americana) inicia visitas ao bairro da Luz Vermelha, em Calcutá, para fotografar a vida de prostitutas deste que é o bairro mais pobre da cidade. Zana impressiona-se com a quantidade de crianças vivendo nos bordéis e percebe que há ali uma ainda mais impressionante e desesperançosa história que urge em ganhar visibilidade. O documentário traz oito histórias. Oito máquinas fotográficas entregues a oito crianças filhas de prostitutas. Com as câmeras na mão, instruções de enquadramento e outras noções de fotografias... são orientadas a captar com um clique o que lhes chamassem a atenção. E será através do olhar de cada uma delas que a vida dali será retratada e resgatada. E o resultado é comovente. As crianças ganham voz, sentem-se corajosas e descobrem que é possível se expressar mesmo tão marginalizados. As fotografias são belíssimas: ora dilacerantes de tão tristes, ora otimistas, espontâneas, criativas e alegres. Outro aspecto comovente é o envolvimento da fotógrafa. Para além de ensinar fotografia e dar-lhes voz, ela consegue através desse trabalho abrir uma janela de esperança por um futuro diferente para aquelas crianças. São feitas exposições com as fotografias tiradas por eles e o dinheiro arrecadado revertido para a educação de cada um.
A primeira vez que ouvi falar desse filme foi há uns quatro ou cinco anos durante uma supervisão do estágio que eu fazia na Delegacia de Mulheres de BH. (Prof. Sandra... que exemplo! Que saudade!) O comentário veio em tom de “meninas, este é obrigatório! Vocês se sentirão inspiradas, chocadas... e é isso que eu quero, é assim que eu preciso de vocês... pra dar conta de atender mulheres vítimas de violência tem que levantar bandeira, tem que envolver, tem que ser de dentro.” E eu não estava ali atoa. Hoje percebo que desde então minhas escolhas profissionais já eram também de alguma forma passionais. (Será que conseguirei não me perder por aí? Será que conseguirei unir carreira e satisfação? Trabalho envolvente e bom salário? O que fazer, qual caminho pegar, em qual alternativa investir... para não me perder por aí???)
Voltando... (porque duas crises em 24 horas é inaceitável! rs)... hoje eu entendi o que ela quis dizer ao citar “Nascidos em Bordéis” naquele dia. O filme me tocou de uma maneira muito especial. Ele resgata nossa vontade de mudar o mundo, mesmo que seja só um pedacinho, mesmo que seja o mundo perto da gente... mesmo que seja o mundo de quem sofre ao nosso alcance. Ainda durante o filme comecei a elucubrar qual poderia ser a minha próxima bandeira. Não tem jeito... “quando nasci, um anjo esbelto desses que vive na sombra disse: vai carregar bandeira!” (Adélia Prado). Ou seja, posso até me dar bem na “Psicologia de ar-condicionado”, mas o que realmente me dá um frio na barriga e me faz arrepiar é o “mão na massa”. Foi assim na Delegacia de Mulheres, no Internato Rural
Fiquei profundamente inquieta.
Inquieta, mas feliz.
Feliz por saber que tem gente levantando bandeiras por aí.
Ps: Será que hoje eu durmo?
"What would you think if I sang out a tune- A little help from my friends-
Would you stand up and walk out on me?
Lend me your ears and I´ll sing you a song
And I´ll try not to sing out of key
Oh, I get by with a little help from my friends
Hm, I get high with a little help from my friends
Uh, I´m gonna try with a little help from my friends"
Persépolis, baseado em quadrinhos, é uma animação autobiográfica sensível, comovente e trágica... contada com muito humor e crítica. Persépolis inicia em 1978, na cidade de Teerã. Marjane é uma menina de oito anos, encantadora, espirituosa, contestadora e “peça rara”, que acompanha atenta e curiosa os acontecimentos da Revolução Islâmica que conduziram à queda do xá. (Veja comentário 1) Com a entrada da nova República, em questão de meses, o Irã entra numa onda de conservadorismo e repressão. Marjane, que é contestadora, revolucionária, gosta de punk, usa tênis adidas e ouve Iron Maiden (2) se vê obrigada, entre outras coisas, a usar o véu e parar de estudar francês. O dia a dia no Irã vai ficando cada vez mais perigoso. Parentes são presos e assassinados (3), bombardeios sob Teerã aumentam e a rebeldia e confrontação de Marjane começa a criar problemas para ela e sua família. Seus pais decidem então mandá-la para a Áustria. Sua despedida do Irã é um dos momentos mais marcantes do filme. (4) Em Viena, aos 14 anos, Marjane vive outras revoluções: adolescência, liberdade, amor e a sensação de exílio e solidão. Depois de uma decepção amorosa (a gente dá vontade matar o cara!!) ela decide voltar pra casa. Seu retorno é conturbado e ela tem dificuldade para se readaptar. Resolve casar-se, o casamento dá errado e ela, ainda ousada e revolucionária, decide sair novamente do Irâ e muda-se para a França.
É um filme para não esquecer. Nos leva a pensar sobre nosso próprio amadurecimento, sobre o assumir com mais autenticidade nossos atos e formas de pensar, a importância de se ter coragem e não se acomodar com o que nos incomoda e com aquilo que sabemos ser errado.
Enfim... Persépolis é cativante, contagiante e muito singelo. Merecia (MIL VEZES MAIS) o Oscar no lugar de Ratatouille.
(1) A cena dela gritando “Abaixo o xá!” como numa passeata pela casa afora é ótima. Lembrei muito de mim durante a minha militância no movimento estudantil na UFMG... (Senti tanta saudade daquele espírito revolucionário que este parêntesis vai merecer outro post.)
(2) Outra cena excelente é ela comprando fita K7 contrabandeada do Iron Maiden, vestindo jaqueta jeans do movimento punk.
(3) A cena do tio na beira da sua cama contando suas histórias de resistência ao regime e depois o pedido dele para, quando já estava preso, despedir-se de Marji é marcante.
(4) A cena dela deitada juntamente com a avó, na noite anterior à sua partida, é maravilhosa. Não resisti, inclusive, a reproduzir aqui uma das falas da avó (que tive que copiar ao assistir o filme... de tão linda! Ela fala assim: "Olha, não quero dar uma de moralista, mas vou te dar um conselho que sempre vai ser útil para você. Na vida, você vai encontrar muita gente idiota. Se te ferirem, pensa que é a imbecilidade deles que os leva a fazer o mal. Assim você vai evitar responder às maldades deles. Porque não tem nada pior no mundo do que a amargura e a vingança... Seja sempre digna e fiel a você mesma".
Não é lindo e profundo???
"A foot and light-hearted I take to the open road,
Healthy, free, the world before me,
The long brown path before me leading wherever I choose.
Henceforth I ask not good-fortune, I myself am good-fortune,
Henceforth I whimper no more, postpone no more, need nothing,
Done with indoor complaints, libraries, querulous criticisms,
Strong and content I travel the open road.
From this hour, freedom!
From this hour I ordain myself loos’d of limits and imaginary lines,
Going where I list, my own master, total and absolute,
Listening to others, and considering well what they say,
Pausing, searching, receiving, contemplating,
Gently, but with undeniable will, divesting myself of the holds that would hold me.
(...)É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!"
- Ser poeta, Florbela Espanca -
"Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o ungüento
Com que sarei a minha própria dor.
Os meus gestos são ondas de Sorrento…
Trago no nome as letras duma flor…
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento…
Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é de oiro, a onda que palpita.
Dou-te, comigo, o mundo que Deus fez!
Eu sou Aquela de quem tens saudade,
The guilty undertaker sighs
The lonesome organ grinder cries
The silver saxophones say I should refuse you.
The cracked bells and washed-out horns
Blow into- my face with scorn,
But it's not that way,
I wasn't born to lose you.
I want you, I want you,
I want you so bad,
Honey, I want you.
(Bob Dylan, I Want Tou)
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do menino.
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que o caminhão passou dentro do seu corpo?
Olha mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão."
(Manoel de Barros, “Infantil”)
Eu queria ser musipoetógrafa. Misturado. Confuso. Embaralhado. Atrapalhado. Esquisito assim. Estranha assim. Sem fazer muito sentido. Sem precisar de fazer razão. Sem rumo certo. Sem passo certo. Velocidade “passeio”... despretensioso perambular de turista entre verso, imagem, nota, revelador, pausa, poesia, quadro, clave, filme, música, máquina, partitura, lápis, megapixel, cifra, verso, moldura, instrumento, papel, escrita, voz, a percepção... e o vento. Musipoetógrafa. Completa assim.
“Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.”
(Manoel de Barros, “O fotógrafo”)
Música, poesia e fotografia: instrumentos de tentativa de imobilização e internalização de um viés do presente. Por que viés? Porque cada uma apreende e dá um sentido àquilo que vê, que sente, que ouve, que vive. Cada coisa ressoa de maneira peculiar dentro de cada um. Congela-se uma idéia do presente - presente imobilizado. Internaliza-se um símbolo do presente - o presente subjetivamente internalizado. Uma poesia não é mesma para todo mundo. Ela não pretente ser a mesma nem para determinada pessoa na segunda, terceira, quarta vez que lida. Não é a mesma se lida em silêncio ou recitada num sarau. Uma foto não é a mesma hoje e daqui tantos anos. Não é a mesma se a sensação que ficou ao ser tirada continua ou se o tempo passou e com ele outras coisa se foram. Uma música não é a mesma para quem compôs e para quem canta num show. Não é a mesma para quem ouve no rádio ou numa serenata. "Something", "Eu sei que vou te amar" e flores na janela do quarto... um ano e meio depois... os significados são outros. A abertura é outra. Hoje, borboletas no estômago . (Ps: Haverá recompensa.) A fotografia, a poesia, a música... mudam com o tempo. Mudam com o olhar. Mudam a partir da mudança dentro da gente. O tempo passa. A gente afina e desafina. Muda-se o viés. Por isso existe música, poesia e fotografia. Tem coisa que é de escrever, outras fotografar e ainda há aquelas que só a música nos faz sentir.
“quem dera um fosse um músico
que só tocasse os clássicos,
a platéia chorando
e eu contato os compassos.
se eu soubesse agora,
como eu soube antes,
a dança alegórica
entre as vogais e as consoantes!
(Paulo Leminski, “Quem dera eu fosse músico”)
M u s i p o e t ó g r a f a
Eu queria os três
Assoviar melodias
Inventar poesia
Fotografar carregador
Mesmo sem fazer razão
. . .
P A S S A D O
P R E S E N T E
F U T U R O
. . .
S u p e r a r.
Superar contém a intrínseca e humilde constatação de que em algum momento algo penoso se plantou no caminho. A vida ali... parecendo nítida, sob controle, gostosa e aconchegante e eis que v u l t z... some o chão...
"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta."
- Guimarães Rosa -
... some o chão, mas aparecem tantas outras coisas! Superamos aquilo do P A S S A D O que causou padecimento. Superar não é esquecer, negar ou desejar que nunca tivesse acontecido. É preciso antes de tudo reconhecer o colapso – das expectativas e certezas - como algo que fez parte de nós. Reconhecer um encontro com a vulnerabilidade demonstra que forte somos e para lá voltaremos. "Oi, já estou de volta! Fui ali e voltei. Foi rápido, mas saudade senti." rs
"O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!"
- Guimarães Rosa -
De repente: um presente do P R E S E N T E. Um presente é um donativo, um brinde... que alguém (ou simplesmente a vida!) nos oferece - intencionalmente ou não. Alguns nos fazem sentir “pior de sorte do que uma pulga entre dois dedos” (rs, Êta Riobaldo! rs). Dos presentes a gente pode reclamar, deixar de lado ou saber aproveitar... qualquer das escolhas, alguma coisa sempre fica: lembrança, sentimento, aprendizado, esperança. Às vezes, presentes vêm com embrulhos esquisitos. E aquele presente veio num pacote imprevisto, triste e nebuloso. Mulher-jagunço... escolhi a limonada. E quanta coisa já muda (e melhora!) com o simples - não confunda simples com fácil - assumir de outra postura, outro jeito de encarar as coisas... e, claro, outros desafios também. “A vida vai ficando cada vez mais dura perto do topo.” (Adoro a convicção do Nietzsche!)
O F U T U R O já começou. Clichês são clichês porque estão certos. “É resultado do que fizermos hoje”. Blablabla, enfim... Hoje é mais importante que o futuro – apesar de daqui vislumbrar que as coisas, cada vez mais, irão se acertar e nós “inda mais alegres” seremos. No F U T U R O estão nossos planos, realizações e acertos. Daqui uns dias estamos lá! Mas apesar de não planejados (geralmente nunca são!) erros, deslizes, vacilos, ilusões, encantamentos e recaídas também acontecem por meramente também fazerem parte. Que seja. Já entendi que as coisas são como são. Dois são dois. Reconhecemos... e superamos.
“Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece. Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, não arroucha o regulamente. Pra que? Um dia, a gente estala a aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta...”
- Guimarães Rosa -
A gente carecia de um “sacode”, um abrir de olhos, um estremecer para firmar novamente de um jeito ainda melhor, estável e amoroso.
E este foi o presente.
E a gente a d o r a pimenta.
"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Nesse vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavra que digo escondem outras - quais? Talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo."
- Clarice Lispector -